quarta-feira, 26 de março de 2008

“Ide pelo mundo inteiro”

A Missão dos Leigos e das Leigas na Igreja e no Mundo


O conceito “leigo”
O leigo foi desvalorizado, por muito tempo, como agente evangelizador, porque se havida desenvolvido um conceito de missão truncado e deficitário.
Foi necessário rever este conceito para descobri nele todas as implicações, não só de uma classe eclesial, mas dos batizados. Mesmo que no Vaticano II ainda prevaleça uma visão de oposição ao definir o leigo como “todos os fiéis que não pertencem às ordens sagradas, nem são religiosos reconhecidos pela Igreja” (LG 31). Configurando-se um olhar mais sociológico que teológico (cf. OLIVEIRA, 2001, p. 55).
“Na visão popular, comum, cotidiana, corriqueira, o termo “leigo” normalmente indica alguém estranho a um assunto. Os próprios dicionários enfatizam tal visão quando colocam essa definição ao lado de outra muito parecida: leigo é quem não tem ordens sacras! Esse conceito bastante negativo tem raiz na clericalização da Igreja, quando na verdade, os cristãos leigos e, de modo particular, as cristãs leigas encontravam-se totalmente excluídos da participação direta na vida e na ação da Igreja, limitando-se a apenas cumprir as ordens emanadas pela hierarquia” (OLIVEIRA, 2001, p. 56).
Na realidade os cristãos/ãs leigos/as são a absoluta maioria dos batizados, que possuem uma missão altamente significativa para a evangelização.
Desde a sua origem e o início de seu emprego no mundo cristão, este termo vem carregado de uma faceta negativa. O seu emprego no mundo antigo designava multidão, massa sem valor, idiota, iletrada. Idéia que foi sendo introjetada e incorporada pelos próprios cristãos, de certo modo, até os nossos dias.
“Essa mentalidade negativa em torno da vocação e da missão do leigo pode ser superada com a constatação de que o próprio termo “leigo” é tardio. Os estudos feitos demonstram que a palavra laikós rarissimamente é encontrada nos autores cristãos anteriores ao século III. Assim, existia antes disto toda uma realidade concreta na qual os cristãos leigos e as cristãs leigas estavam bem inseridos. A linguagem anterior a esta época, especialmente a do Novo Testamento, é rica e fecunda. Não discrimina os leigos e as leigas, mas confere-lhes plena cidadania no âmbito da comunidade cristã. Jamais são considerados inferiores, de segunda categoria” (OLIVEIRA, 2001, p. 58).
No início os cristãos não formalizaram as distinções internas na Igreja. A maior distinção era em relação ao mundo, opositor a Jesus Cristo: primeiro o representado pelo Sinédrio, depois pelo poder político romano, perseguidor. Os cristãos, sem distinção de categorias, se entendem como um povo convocado pelo Pai, redimido pelo Cristo e transformado pelo Espírito, separado do mundo que não reconhece esta atuação salvífica. Ressaltavam a comunhão entre os membros mais que a distinção. “Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo” (Gal 3,28).
Aos poucos vai entrando, pela filosofia e pela mentalidade jurídica, a estrutura hierárquica na Igreja, com a conseqüente desvalorização dos leigos, reforçada com a simbiose entre Igreja e Estado, realizada a partir do Edito de Milão (313). Com o surgimento do monaquismo, esta visão será ainda mais acentuada: os leigos serão considerados “do mundo”, em oposição aos monges e sacerdotes, “homens espirituais”. A monastização e a clericalização colocarão a perfeição da vida cristã nestes estilos de vida, os leigos serão vistos como “idiotas e absolutamente desprezíveis” (Calati, 1988, p. 46).
Cabe resgatar a visão de que são eles “concidadãos do povo de Deus e membros da família de Deus” (Ef 2,19).

O que é missão?
Quando falamos em missão, todos nós já temos uma noção, uma idéia. E não estamos errados na idéia que temos. Somente, às vezes, precisamos aprofundá-la.
A missão pertence à Igreja como algo constituinte. Não existe Igreja sem missão. É parte integrante do ser Igreja. É o ser da Igreja. Está embasada no mandato de Jesus: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai a boa notícia para toda a humanidade” (Mc 16,15).
É a atividade divulgadora da fé, ao mesmo tempo, é o testemunho da vida em Jesus Cristo. O cristão, a cristã é o que é em Cristo Jesus. Nele vive. Nele encontra o sentido da existência e da atividade. Com os critérios dele observa o mundo e o constrói.
Atividade que se faz cotidiana, pois é a vida própria de cada membro do Povo de Deus, como modo próprio de ser cristão.
Assim, começamos a compreender que a missão não é somente uma atividade para além fronteiras, chamada na Igreja missão ad gentes, mas é uma atividade que se desenvolve em diversos níveis da vida cristã. Se ela faz parte do cotidiano e é atividade permanente e constituinte do ser Igreja e do ser cristão, então ela permeia todos os momentos da vida, todos os segundos, cada decisão, cada opção e cada reflexão.
Ela é, deste modo, geradora de espiritualidade, sendo alimentada, por sua vez, por esta. É geradora de vida, lutando por esta. Nascendo da eucaristia, é ligada a ela, o que configura conditio sine qua non para a existência da Igreja.

Quem participa da missão da Igreja?
Na Igreja há diversidade de ministérios, como diversos são os dons, mas há unidade de missão (AA 2). A missão é unitária porque um é o envio do Senhor. Por isso, até hoje, qualquer cristão pode batizar.
Jesus manda operários ao mundo todo, a todas as realidades, para uma coisa somente: “anunciai a boa notícia” (Mc 16,15).
Cada qual no seu ambiente. Cada qual com o seu jeito. Cada qual com o seu dom. Mas todos unidos no mesmo mandato, na mesma missão.
“O apostolado dos leigos é participação na missão salvadora da Igreja. Todos estão qualificados pelo Senhor ao exercício desse apostolado, através do batismo e da confirmação. A alma desse apostolado é a caridade para com Deus e para com os homens, alimentada e comunicada pelos sacramentos, especialmente pela eucaristia. Os leigos são especialmente chamados a tornar a Igreja presente e ativa nos lugares e nas circunstâncias onde somente por eles pode atuar o sal da terra. Através dos dons recebidos, todo leigo é, ao mesmo tempo, testemunha e instrumento da própria missão da Igreja, ‘segundo a medida do dom de Cristo’ (Ef 4,7)” (LG 33).
Se batismo e confirmação qualificam para a missão, esta qualificação não é automática. Cabe deixar-se qualificar. Os sacramentos não são ritos mágicos, mas força para a ação qualificante, prática de vida. São sinais que indicam a guia de Deus.
Essa qualificação é destinada à atuação no mundo, onde somente eles podem atuar, onde somente eles podem ser o sal da terra:
“Seguindo a intuição especial de João Paulo II na exortação apostólica Christifideles laici, podemos definir a missão dos cristãos leigos e leigas como serviço à pessoa humana e à sociedade. Isto pode ser especificado em seis direções convergentes: 1) defender e promover a vida; 2) fazer da família o primeiro espaço para o empenho social; 3) tornar-se destinatários e protagonistas da política; 4) exercer a solidariedade; 5) pôr a pessoa humana no centro da vida econômica e social; 6) fazer acontecer a inculturação. É aqui nesses espaços que o leigo e a leiga devem estar presentes. Aqui se realiza sua missão. Aqui se dá, por parte deles e delas, o anúncio do Evangelho” (OLIVEIRA, 2001, p. 78).
Isso é possível a partir de uma inserção no mundo laico, sem proselitismos e sem, necessariamente, partir de valores bíblicos. De fato, hoje, os cristãos leigos e as cristãs leigas tomam maior força na medida em que, vivendo a partir dos valores cristãos, entram nas estruturas, serviços, setores, locais do mundo organizado e constroem o novo a partir das mesmas esperanças de tantas pessoas que não crêem como nós. As atitudes fundamentais sempre serão o diálogo e a solidariedade, que não excluem, mas colocam em evidência o repúdio a toda e qualquer forma de desumanização, de violação do humano.
Os leigos assumem um status que lhe é devido. De fato, o cristão leigo é alguém qualificado pelo Cristo para uma atividade que só ele pode fazer. Não é, como no passado, um apêndice da hierarquia clerical da Igreja, mas agente participante da missão.
“Além desse apostolado, comum a todos os fiéis, os leigos podem ainda ser chamados de diversos modos, a cooperar de maneira mais imediata com o apostolado da hierarquia, a exemplo dos homens e mulheres que, trabalhando muito no Senhor, ajudaram o apóstolo Paulo na evangelização (cf. Fl 4,3; Rm 16,3ss). Podem ser chamados, finalmente, pela hierarquia, a assumir certas funções eclesiásticas, que visam diretamente a fins espirituais” (LG 33).
É reconhecido também, dentro da missão eclesial, um tipo de ministerialidade própria dos leigos, na colaboração com o ministério ordenado. Essa ministerialidade se expressa de modo particular naquelas funções litúrgicas ou comunitárias: Palavra, Sagrada Comunhão, visitação, coordenação, catequese... Mas não se limita a elas. Todo serviço à vida pode ser considerado um ministério eclesial, quando feito em comunhão eclesial, pois é cumprimento do mandato do Senhor.
“Numa palavra, os leigos devem colaborar na grande obra de fazer chegar a todos os homens, de todos os tempos e latitudes, o conhecimento do desígnio salvador de Deus. Deve-se, pois, abrir caminho para que participem com afinco, segundo sua capacidade e de acordo com as exigências das circunstâncias, da tarefa salvadora da Igreja” (LG 33).
Tarefa salvadora que não possui como meta somente o lado espiritual do ser humano, mas também sua corporeidade (o sacramento da Unção está aí para nos lembrar disso), sua sociabilidade e todas as dimensões que levam à vida plena.
No exercício de sua plena cidadania eclesial, os leigos e as leigas são chamados e chamadas e participação não só na execução de tarefas, sejam internas ou externas, mas também a atuarem nas instâncias do poder eclesiástico (cf. OLIVEIRA, 2001, p. 70), o batismo e a crisma os habilita a essa participação.
Pelo batismo são incorporados ao Cristo. Nele participam do múnus sacerdotal, profético e real. Esta incorporação e participação em Cristo fazem dos leigos e das leigas cidadãos plenos na Igreja. Não podem ser excluídos de nada. O que indica ser o mundo elemento constituinte da santificação de toda a Igreja.
“É toda a vida da pessoa que é culto, ato adorador e ação de santificação. Sob esta perspectiva, as realidades naturais (trabalho, estudo, lazer, política, economia, ecologia, família, casamento, ciência etc.) não são secundárias, mas lugar, espaço de santificação e de realização vocacional. Para ser santo ou santa, para “consagrar-se” a Deus não é necessário sair do mundo enquanto tal. A santificação e a consagração vão acontecer no mundo, na história, na realidade. Aqui, no dizer de Chenu, as realidades humanas não são “meios, andaimes provisórios das mansões eternas”, mas elementos que possuem um valor e um sentido salvíficos próprios e definitivos” (OLIVEIRA, 2001, p. 72).

A vocação dos cristãos leigos e das cristãs leigas
Antes do chamado à missão há o chamado à vida cristã. Todo carisma é dado a alguém que já está na fé. “a vocação, entendida sempre como convocação par a realização de uma missão, é sempre posterior ao processo de conversão” (OLIVEIRA, 2001, p. 61).
O Novo Testamento deixa entrever que todos são chamados como Povo, consagrados e incorporados como Corpo de Cristo, sem distinção ou privilégio de um ou outro grupo.
“A partir dessas considerações podemos afirmar que a vocação fundamental dos leigos e leigas é a santidade. De fato, como afirmou o Concílio Vaticano II, todas as pessoas movidas pelo Espírito do Pai de Jesus Cristo, na variedade dos modos de vida e dos serviços, são chamadas a ‘uma única santidade’ (LG 41)” (OLIVEIRA, 2001, p. 61).
Essa santidade se dá e se desenvolve no cotidiano, no “labor cotidiano” (LG 41), naquelas tarefas que atingem a profundidade do dia-a-dia da vida. Deste modo, os leigos/as lembram à Igreja o seu lago laico. A Igreja é Igreja no mundo, não fora dele, nem em oposição a ele. É nele que se deve desenvolver aquela santidade proveniente de Deus e que a Ele conduz. O mundo contém algo de bom (cf. GS 36). Por isso coloca-se em diálogo com o mundo para ensinar e aprender; torna-se parceira com o mundo para a construção do Reino de Deus. “Somente a consciência da laicidade permite que ela se esforce para fazer a leitura do Evangelho no ‘evangelho da história’, ou, como diz João Paulo II, no Evangelho da vida” (OLIVEIRA, 2001, p. 63).
Esta atitude fundamental leva a uma espiritualidade de comunhão. Está aberta ao diferente, com respeito e acolhida, evita os “clones eclesiásticos” de santidade pré-fabricada. Num diálogo respeitoso e consciencioso, a laicidade da Igreja recorda que a comunhão se dá na acolhida do diferente, na compreensão da Palavra única criadora de todas as coisas. Assim, a observação formal das regras dá lugar à motivação interior e à responsabilidade, de forma a criar uma liberdade geradora de vida santa no cotidiano, no mundo. Os cristãos leigos e as cristãs leigas são o sinal constante dessa laicidade da própria Igreja; de todos esses valores.
“A vocação do leigo e da leiga é essencialmente ‘mundana’, ou seja, a de fazer penetrar dentro da Igreja os valores que são essencialmente do mundo: respeito pela dignidade da pessoa humana e por seus direitos, liberdade, responsabilidade, diversidade, democracia, diálogo, tolerância etc. Podemos então dizer que a vocação dos leigos e das leigas é a de ser porta-vozes das exigências de autonomia e de liberdade que o mundo criado por Deus faz aos que acreditam em Jesus Cristo” (OLIVEIRA, 2001, p. 64).
Por serem criadores e autores da cultura da vida, são chamados a defender a autonomia das realidades temporais. Estas têm o direito de caminhar sua própria via, não sujeita a valores de instâncias religiosas. Estas instâncias podem, num respeito profundo pela autonomia daquelas, lançar luzes, sem a pretensão de explicar tudo ou de dominar os caminhos; pois foi o próprio Criador que fez todas as coisas com seu próprio fundamento. Os leigos e as leigas ajudarão assim a ver as realidades a partir delas mesmas, sem necessitar de explicações fatalistas ou espiritualistas, mas da fundamentação existente na base de cada realidade humana e criatural.
Há aqui uma mudança na visão de mundo e de missão. Acostumados com uma visão negativa do mundo, o qual necessitava ser evangelizado porque não era bom, somos chamados a ver o mundo como uma realidade habitada pelo bem. Os leigos e as leigas anunciam ao mundo, desse modo, a autonomia de Deus, que age como e quando quer, e anunciam à Igreja a autonomia do mundo. Proclamam em toda parte: “e Deus viu que era bom” (Gn 1,10.25.31).
Porém, se os leigos e as leigas mostram o valor das realidades temporais e sua autonomia, também ajudam a colocar valor nelas, não caindo em esquemas dualistas. Se as realidades mundanas são obra do Criador, elas não podem ser desprezadas nem desvalorizadas através da desconsideração ou do abuso. A criação não é nem valo absoluto em si nem apenas matéria para o sagrado. Somente quando quebramos a barreira entre o profano e o sagrado é que se atuará com força esta comunhão entre mundanidade e espiritualidade. Daqui que a vocação dos leigos e das leigas não pode ser reduzida à freqüência de rezas mutiladas e açucaradas (cf. OLIVEIRA, 2001, p. 68). Pieguice e carolice não servem para a vida social, não servem igualmente para a laicidade eclesial.
Mais do que necessidade, é um direito dos leigos e das leigas ter a sua própria espiritualidade. O pluralismo faz parte da criação e da espiritualidade da Igreja. Todavia, é no mundo, inserido no mundo, mergulhado no cotidiano que os leigos e leigas vão desenvolver e alimentar a própria vocação cristã laical e ajudar à Igreja a manter sua parte laical na missão confia por Deus.
Afirmam; desse modo, a universalidade de Cristo, que não se enquadra em esquemas rígidos e fechados, nem mesmo eclesiásticos.

BIBLIOGRAFIA
Calati, B.; Grégoire, A. e Blasucci, A. La spiritualità del Medievo. Roma: Borla, 1988.
Calero A. M., El laico en la Iglesia, vocación y missión. Madrid: CCS, 1998, 2ª ed.
OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de. Nossa resposta ao amor: teologia das vocações específicas. São Paulo: Loyola, 2001.

Escrito em Porto Alegre, 21/09/2005.

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